sábado, 28 de novembro de 2009

Irene Carvalho teve a visão de Brasília 40 anos antes da fundação


Irene Martins de Souza Carvalho, a D. Irene da Comunhão Espírita, recebe cartas até hoje. São pequenos bilhetes de gente aflita por notícias de parentes e amigos que a procuram na Comunhão, que ajudou a fundar na L2 Sul. Há 45 anos, surpreendendo os parentes evangélicos, ela decidiu abraçar a causa espírita que a impressionava desde menina.

Irene chegou em Brasília em 1960. O marido, Mário Carvalho, veio antes com um irmão, em 1958, para definir onde seria a filial da goiana Casa do Barata. O endereço escolhido foi na 506 Sul. A famosa loja de ferragens funcionou até 1995, quando fechou suas portas. A força de seu nome, no entanto, assim como o símbolo da loja, um serrote luminoso, é lembrado por muita gente até hoje.

O ano de 1959 foi dedicado à edificação do prédio de quatro andares: subsolo, térreo e dois andares para a residência da família. Foram inúmeras as idas e vindas até Goiânia- por uma estrada de terra em quase toda a sua extensão, para visitar a família.

Aos poucos, recorda Irene, a cidade ia ganhando forma. Havia inaugurações frequentes de lojas, bancos, bares, sorveterias, casas de doces. Tudo com muitos fogos de artifícios e coquetéis para todos. Era um clima de festa permanente a fazer contra-ponto a poeira- quando o clima era seco, e a lama- quando a chuva era intensa. Muita gente ficava desiludida ao chegar, diz Irene, imaginando que a cidade estava pronta, e encontravam um canteiro de obras.

A visão

Irene conta que viu Brasília 40 anos antes da cidade ser inaugurada. “Eu devia ter uns 13 anos, acordei de madrugada e tive a visão de uma cidade diferente, futurista, e uma voz me disse ‘esta é a cidade um novo tempo, e você vai morar lá’. Quando cheguei em Brasília, em 1960, tive certeza de que era a cidade da minha visão”.

Junto com o marido, Irene fundou o Nosso Lar, no Núcleo Bandeirante, que abriga crianças em situação de risco. São 90, de várias idades. Ela também é autora de teatro, com 36 peças encenadas, todas com a temática espírita como pano de fundo, e também escreve livros. Na visita que fizemos ao seu apartamento para esta entrevista, ela nos presenteou com o livro de sua autoria “Amanhã será outro dia” – pelo espírito Franco Leal.

sábado, 21 de novembro de 2009

O dedo verde de Ney Ururahy




Ele mora em outro bioma. Quando cruzamos o portão da chácara no Lago Sul deixamos a vegetação típica do Cerrado para entrar na Mata Atlântica, vestígios de transição para a Floresta Amazônica e traços de vegetação ciliar, mas há também sinais de Cerrado de Campo Limpo. A impressão é de um jardim botânico. É assim o ambiente de trabalho e residência do paisagista Ney Ururahy, 88 anos, um pioneiro em Brasília.

Ele esteve aqui em 1956 e desembarcou em definitivo com a família em 28 de setembro de 1958. Foi morar em uma das casas do lote de 15 que ficaram prontas no Lago Sul: QL 1, conjunto 16, casa 18. Ney foi o primeiro morador do Lago Sul. Ele não hesitou em mudar para Brasília ao receber o convite de Israel Pinheiro, primeiro presidente da Novacap e prefeito de Brasília, para chefiar seu gabinete.

“Eu achava bonito ver o Lago Paranoá nascendo. Via da minha janela o nível da água subindo a cada dia. Era uma época fantástica, todos eram solidários e havia talentos raros reunidos em um único espaço”, define o paisagista referindo-se a Oscar Nyemeryer, Burle Max, Israel Pinheiro, Athos Bulcão, Juscelino Kubitschek e muitos outros gênios das décadas de 50 e 60.

Ney se define como um “jardineiro chic”. Modéstia, é agrônomo e fez vários cursos de botânica. É um mago da vegetação, tem “dedo verde” e o talento no DNA. O pai, Abelardo da Veiga Ururahy, trabalhou na Divisão de Terras e Colonização, o INCRA da época, e viajava muito pelo País. As histórias das viagens influenciaram o menino Ney, que tinha vontade de conhecer o Cerrado e as Matas de São Patrício, no município goiano de Jaraguá.

O paisagismo do antigo aeroporto de Brasília é obra sua, assim como os jardins da UnB, do Itamaraty, do anexo da Câmara Federal, da SQS 114, da SQS 308 e das embaixadas da Inglaterra e da Itália. Há muito mais, mas a discrição impede que nomeie todas. Cartas? Não lemos nenhuma, mas a filha de Ney, Cristine, prometeu encontrá-las. Em breve voltaremos no bioma que Ney habita para buscar essas relíquias caligrafadas.

sábado, 14 de novembro de 2009

A pioneira Maria de Lourdes Abadia: do barraco para o palácio


A filha de Eduardo Borges de Oliveira, jardineiro, gramador oficial do Palácio da Alvorada, inaugurado no dia 30 de junho de 1958, é Maria de Lourdes Abadia, ex-deputada federal constituinte, ex-deputada distrital, ex-secretária de Turismo, ex-vice-governadora e ex-governadora do Distrito Federal.

Com tantos cargos importantes, pouca gente sabe que Abadia também é candanga e que morou em um barraco perto do Beco do Cacete, no Núcleo Bandeirante, e em outro em Taguatinga. Nessa época, ela dava aulas em uma escola da Praça do Bicalho, trabalhava e cursava Serviço Social na UnB. Não tinha tempo para nada, nem para almoçar. Durante três anos sua refeição ao meio dia se resumiu a dois ovos cozidos preparados pela servente da escola.

Ela também trabalhou como alfabetizadora de adultos do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) e utilizava o método do educador Paulo Freyre, considerado “subversivo” nos tempos da ditadura. “Nós usávamos um projetor de slides para mostrar as letras e como se formavam as palavras. A polícia política achava que o projetor era uma máquina comunista e pediu que os alfabetizadores a entregassem”. Ela não entregou e mostra para os leitores do blog o projetor de slides russo (foto de Paula Sholl).

Abadia guarda objetos em lojas


Maria de Lourdes Abadia fala do pai com orgulho. Foi ideia dele deixar Bela Vista (GO), em 1957, para participar da construção da nova capital. Abadia exibe a carta do presidente Juscelino Kubitschek endereçada ao seu pai cumprimentando pelo trabalho feito nos jardins do Palácio da Alvorada e a medalha que recebeu. Nesse tempo, ela e os irmãos ficaram em Goiás com a mãe, Geni Bonifácio Borges, viriam um pouco depois.

Como estudante da UnB, Abadia participou do grupo de pesquisadoras que cadastrava as famílias que seriam removidas de áreas invadidas para Ceilândia. E foi assim que acabou assumindo o Centro de Desenvolvimento Social e, mais tarde, seria a primeira mulher a assumir a administração da regional.

Cartas não faltam na vida de Abadia, mostra várias e promete mais. Tem duas lojas alugadas na W3 Sul com objetos de toda ordem que guardou ao longo da vida e que pretende selecionar, catalogar e expor. São planos para o futuro.

Entre os guardados, uma antiga boneca de pano que recebeu da então primeira dama Maria Tereza Goulart, esposa do presidente da República João Goulart, o Jango, às vésperas do Natal. “Eu já era uma moça, mas não resisti e peguei o brinquedo”, recorda Abadia com a boneca no colo (foto de Paula Sholl ).

sábado, 7 de novembro de 2009

Na carta, o pedido de casamento feito por Laudelino





Ele datilografava 330 toques por minuto, sem erros. O Banco do Brasil, naqueles idos dos anos 60, exigia para contratar um funcionário a performance de 180 toques. Se o Livro de Recordes já existisse, com certeza o contabilista da Novacap  Laudelino José Ferreira estaria lá. O desempenho impressionou a auxiliar administrativa Jurêdes Figueira.

Foi com muito orgulho que Laudelino, 72 anos, recordou esta fase de sua vida em Brasília numa tarde chuvosa de sábado, em casa, no Park Way, ao lado da esposa Jurêdes, que também foi funcionária da Novacap. Ele chegou em Brasília em março de 1958, com um tio, vindo de Uberaba (MG). Ela um pouco depois, em 59, com a família, vinha do Rio de Janeiro. No dia oito de abril de 1961 estariam casados. A cerimônia religiosa foi realizada na Igrejinha da 108 Sul.

Quando decidiam casar, o pai de Jurêdes estava no Rio. Laudelino não teve dúvida, enviou um carta ao futuro sogro, João Figueira Neto, pedindo a mão de sua filha em casamento. Em pouco tempo chegava a carta com a resposta do sogro: sim, ele abençoava a união.

Laudelino e Jurêdes tiveram quatro filhas: Maria Cristina, Ana Lúcia, Miriam Noêmia e Rosa Maria. O casal morava com as quatro meninas em um apartamento de um quarto na 408 Sul, depois a família mudou para a 312 Norte, 711 Norte e, por fim, para o Park Way.

Numa agradável conversa na varanda, Laudelino recorda dos tempos em que colhia cajuzinho do cerrado nos campos do final da Asa Sul, mas tem também uma lembrança amarga, a malária que contraiu logo que chegou em Brasília. “Provavelmente peguei malária em uma fazenda, onde fiquei uns dias antes de seguir para Brasília”. Os médicos não souberam diagnosticar a origem do febrão e ele foi para Uberaba, lá teve o diagnóstico.

A oposição ao governo do presidente Juscelino Kubistchek logo transformou a malária de Laudelino em propaganda negativa para a nova capital. “A UDN fez tanto barulho que o presidente JK mandou um avião, com médicos, me buscar em Uberaba, mas não precisou, eu voltei depois, totalmente recuperado”.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Notícias pelas ondas do rádio-amador de dona Lourdes




Rádio-amadora casada com o dentista Alcides Aquino Leite, Maria de Lourdes Tostes Aquino Leite deixou a pequena Caratinga (MG) porque “não gostava de cidade do interior”, queria viver em um grande centro. Nada melhor do que participar da construção da capital da República. E foi assim que o casal viajou para Brasília, em 1958, com mais quatro filhos e a japonesinha Yoka, com cinco anos, que era órfã.

Foram morar na Cidade Livre, que se transformou no Núcleo Bandeirante. A família vivia em uma casa de madeira da Segunda Avenida, 1.085, vizinha da casa da enfermeira Cacilda, madrinha do filho mais novo de Lourdes, Eduardo, nascido em 1965.

“Meu marido construiu nossa casa com a ajuda do padre Roque. O padre ia muito lá me casa, ele gostava de comer uma linguicinha frita na cachaça”, recorda Lourdes.

Dona Maria de Lourdes aprendeu os segredos do rádio-amador e pegou gosto graças aos ensinamentos de seu Luiz, pai de Mariza, esposa do vice-presidente da República José de Alencar. “Ele me ensinou tudo que sei”. Hoje, aos 86 anos, ela faz esculturas em madeira e estuda informática.

Na falta de uma agência dos Correios, o rádio-amador de Lourdes levava e trazia notícias de parentes e amigos. “Muita gente ia na minha casa mandar recados e buscar notícias dos parentes”. O esqueleto do rádio está em um canto do apartamento do casal na 307 Sul.

Alcides, 87,  tinha consultório e casa de artigos odontológicos e foi o fundador da Associação Brasiliense de Odontologia (ABO), em 1959. Entre seus pacientes ilustres está Oscar Niemeyer, que foi atendido de emergência no Núcleo Bandeirante graças a um canal inflamado. “Quando cheguei em 58 já havia uns 20 dentistas aqui”, informa Alcides. A filha mais nova de seu Waldyr (o "cara" da draga), Flávia Maria, cursou odontologia por influência de Alcides. “Ela ia no consultório e achava tudo lindo, principalmente os vidrinhos”, lembra o dentista.

Carta para a amiga Cacilda


Lourdes tem uma carta que ainda não foi entregue e que revela o afeto de uma amizade de mais de 50 anos. É um depoimento para a enfermeira Cacilda e que deve constar do livro que Horácio, filho de Cacilda, prepara sobre a vida de sua mãe. Não vamos estragar a surpresa, mas segue um trecho da cartinha:

“Conheci Cacilda em 1958...Fui morar no Núcleo Bandeirante. A poeira era tanta que os pés atolavam, tudo ficava pintado de vermelho...No meio de tudo um oásis: a casa de Cacilda, com horta e jardim...Guerreira Cacilda, enfermeira...Era solícita a qualquer hora do dia ou da noite, acompanhando o desconhecido lá ia Cacilda com seu avental branco e sua maletinha...Sempre invejei a fé de Cacilda...”