Você nem me deu tempo de responder à sua carta. Na quinta-feira tive um trabalho enorme de rever e corrigir meus contos, para remetê-los a você. Quando telefonei para a Déa, você já havia seguido para São Paulo, no avião das nove horas.
Do domingo, à noite, o Carlos Murilo ligou-me, aflito, para dizer que estava correndo o boato, outra vez, de sua morte. Fiquei irritadíssima com a falta de imaginação dos boateiros. Mas resolvi ir para a casa dele, com uma aflição menor do que da vez anterior.
Os telefonemas foram-nos assustando. Ficava a lembrar-me da sua expressão naquela noite de sábado, na fazenda, e do que você havia dito. E pensava: vai ser tudo igualzinho. Eu vou contar-lhe as aflições da Sarah, das filhas, dos amigos, e ele vai sorrir meio triste, com pena de ter causado tanto dano às criaturas que ama. Sem nenhuma culpa. Você não se habituara a causar danos sem culpa. Sempre as pessoas que o amam sofreram sem que você tivesse, realmente, a intenção de feri-las. Sofreram as injustiças que lhe fizeram, a sua ausência durante longos anos no exílio, as injúrias, as ingratidões todas.
Você já nos devia saber acostumados a esse tipo de mágoa. Mas sofria assim mesmo, mais com pena da gente do que de você.
Mas... não é que desta vez foi verdade? Não é que, ainda sem culpa, você nos deixou, a todos, arrasados de sofrimento?
Não que o pretendêssemos eterno. Morrer, todo mundo morre, mas debaixo de uma carreta?
Não dava para você morrer de avião, com as milhares de horas de vôo que você acumulava?
Daria para tirar o brevet, só pelo tempo passado no ar. Não podia, pelo menos, morrer de enfarte? Tinha que ser nessa violência? Tudo seu foi assim tão violento, com tanta força, com tanto entusiasmo! Não dava para diminuir a barra um pouquinho neste final?
Olhe, você não imagina, depois, o que aconteceu. Um terremoto não teria feito tanto estrago. O seu Brasil ficou estarrecido. A tristeza já não era privilégio de seus amigos. Era geral. A alegria saiu do rosto das pessoas. Os suspiros e as lágrimas passaram a ser a mensagem de um desespero. Ninguém se falava, só abraços e soluços, e mágoas muitas.
No dia seguinte, o seu corpo chegou à sua Brasília, todo coberto com a bandeira do Brasil. O aeroporto estava lotado. Os táxis carregavam as pessoas de graça, todos com um pano preto, significando luto. Os motoristas sabiam que, no final da tarde, teriam de prestar contas aos seus patrões dos quilômetros percorridos. Mas ninguém estava pensando nos momentos seguintes.
Os momentos seguintes sempre existiram. Um líder enrolado numa bandeira é que é raro.
Os cordões de isolamento eram enormes. Uma senhora gorda, simpática, disse para um soldado: “Os senhores estão isolando o quê? Tem alguma coisa aqui para ser isolada? Nós vimos buscar o nosso Presidente, no maior respeito que ele nos merece, ele nos pertence e queremos prestar-lhe a última homenagem. Já não chega o isolamento de todos esses anos que nos impuseram? Vamos, tirem esta corda”. E o soldado tirou.
Rapazes de quinze a vinte anos que, ou não eram nascidos, ou eram crianças bem pequeninas quando você foi presidente, vinham de motocicleta, com camisas escuras e uma faixa com os dizeres: “Ao nosso querido Juscelino, a nossa gratidão”.
Como é que pode? Nessa idade em que eles não estão dando bola para nada, em que morrer e nascer para eles não faz diferença, como é que tiveram a sensibilidade e a grandeza de perceber o momento histórico que estavam vivendo? Como foi que entenderam que esta terra que pisam, este imenso gramado, este excesso de luz e de espaço, estes palácios, estas praças, as avenidas de imensa beleza, eles os deviam a você?
A ida até a catedral foi fantástica. Os carros andavam em três filas, a vinte quilômetros, entre outros carros e outras gentes que aguardavam a sua passagem: você foi num carro preto, nada bonito. Mas ninguém se importou muito com essas coisas. Você nunca ligou mesmo para as aparências.
A Catedral de Brasília era só flor e candango. Nunca vi uma combinação mais perfeita: a singeleza da flor misturada à pureza dessa gente pobre e simples.
Bateram palmas quando você chegou. Não entendi bem na hora, mas, passada a minha burrice, percebi que estavam felizes de ter você com eles. Você vivo, não deixariam. Você morto, deixaram.
Um homem escuro queria saber se você seria enterrado no cemitério comum. Eu respondi que sim. Ele sorriu e respondeu: “Que bom, agora a gente vai até querer morrer para ficar perto dele”.
Ah, ia-me esquecendo de contar: tinha índio também, uma porção de índios. Na realidade, tinha de tudo. Mas, o forte mesmo, a massa humana, era de gente simples, aquele tipo de gente que você sempre amou, gente que sempre sofreu calada, que suportou tudo, que engoliu tudo, humildemente.
Grande parte daquela gente não pôde entrar na catedral. Mas deu um jeitinho de vê-lo através dos vidros. Até lavaram os vidros com aquela piscina circular que o Oscar chamou de espelho d’água. Alguns não resistiram, entraram pelo tal espelho e surgiram do lado de dentro, ensopados.
As coroas eram muitas, centenas. Estavam até bonitas no começo. Mas, depois, os pobres que não tiveram dinheiro para comprar coroas, resolveram homenagear você com as coroas alheias. Foram tirando as flores e jogando sobre você, jogando, na maior felicidade. Parecia uma chuva de flores.
A missa, propriamente, não houve. Foi uma grande confusão de flores, de palmas, de hinos, de choros.
A Sarah teve de se dirigir à multidão pedindo calma. Quando prometeu você a eles, foi uma tranqüilidade. Voltou a paz na catedral.
Mas foi paz por muito pouco tempo. Porque, quando você chegou lá fora, para ser colocado noutro carro (acho que esse não era preto, e sim vermelho, parecia carro de corpo de bombeiro), tomaram-no nos braços, como num forte abraço de amigos que não se encontram há anos, e levaram-no, cantando, pelas avenidas da sua Brasília.
Eram seis horas da tarde, a sua hora, a hora do pôr do sol que você tanto adorava. Choravam e cantavam. A voz saía meio desentoada, mas era o tal nó na garganta que dá na gente quando a emoção é muita.
Sarah, entre amargurada e feliz, seguiu com as filhas a procissão. Sim, procissão. Era o que parecia. Era o que era.
Elas estavam muito tristes, mas muito altivas. Pareciam carregadas de orgulho.
O caminho era longo, vários quilômetros. Mas ninguém estava preocupado com isso. Ninguém estava pensando em metros. Todos já haviam caminhado tanto por este mundo. Tanto. Daqui para ali, dali para aqui, sem destino nenhum.
Agora, neste exato momento, tinham um destino: colocar em repouso um homem exausto de tanto sonho e de tantas desesperanças. Deitá-lo para dormir em paz, ao som do hino de sua pátria e da canção de ninar que sua mãe costumava cantar, ao adormecê-lo. Fazê-lo descansar das canseiras do mundo, dos sonhos sonhados alto demais, das esperanças esperadas demais.
Adormecê-lo assim, como se adormece uma criança exausta de esbarrar na mesa, nas cadeiras, na vida.
Deixá-lo quietinho, sem o perigo de acordar e ter que dessonhar tudo de novo, desapontando-se.
Dar-lhe a paz que sempre desejou, mas que nunca pôde ter, pelo seu temperamento ruidoso e pela mania de ter aspirações grandiosas.
Deixá-lo ali, sozinho e tranqüilo, sabendo que ninguém mais, ninguém mesmo, poderá ferí-lo.
Receba o meu último, e o mais emocionado de todos os beijos.
Vera"
Vera,
ResponderExcluirSou Silvana Gontijo. Mineira, escritora e jornalista. Fui à sua casa, em Brasília, quando lancei meu livro A Voz do Povo. Você convidou a mim e ao grupo que me acompanhava para um jantar magnífico. Estávamos junto com o Tom Jobim no festival de Cinema e você nos encantou a todos com sua simpatia energizante. Para minha surpresa, ao entrar no seu vestíbulo, reconheci uma escultura da minha mãe, a escultora Leda Gontijo.
Estamos montando uma mostra retrospectiva e comemorativa de seus cem anos lúcidos saudáveis e produtivos. Sim, ela está bem viva. Você poderia nos emprestar aquela escultura? Moro no Rio e meu email é: silvana@planetapontocom.org.br telefones(21) 987792573 e (21) 22203300.
um beijo
Silvana Gontijo26 de maio de 2014 11:54
ResponderExcluirVera,
Sou Silvana Gontijo. Mineira, escritora e jornalista. Fui à sua casa, em Brasília, quando lancei meu livro A Voz do Povo. Você convidou a mim e ao grupo que me acompanhava para um jantar magnífico. Estávamos junto com o Tom Jobim no festival de Cinema e você nos encantou a todos com sua simpatia energizante. Para minha surpresa, ao entrar no seu vestíbulo, reconheci uma escultura da minha mãe, a escultora Leda Gontijo.
Estamos montando uma mostra retrospectiva e comemorativa de seus cem anos lúcidos saudáveis e produtivos. Sim, ela está bem viva. Você poderia nos emprestar aquela escultura? Moro no Rio e meu email é: silvana@planetapontocom.org.br telefones(21) 987792573 e (21) 22203300.
um beijo